sexta-feira, 30 de maio de 2008

Sem Ressentimentos


Ferenc Snétberger & Markus Stockhausen
Streams
Enja 2007
14,5/20

Ferenc Snétberger é um guitarrista húngaro nascido em 1957, filho mais novo numa família de músicos de origem cigana (o pai era também guitarrista). Após um início de maior apetência pela música cigana (com Django Reinhardt como modelo) mas também pelos ritmos brasileiros e do flamenco, ingressou no Conservatório Béla Bartók em Budapeste, onde aprendeu primeiro guitarra clássica e mais tarde guitarra-jazz. Vive há vários anos na Alemanha. Em 1995 compôs um concerto para guitarra e orquestra denominado ”Em Memória do Meu Povo”, por ocasião do 50º aniversário do fim do holocausto nazi, inspirado nas suas raízes ciganas, como um monumento ao sofrimento humano, já tocado por orquestras de câmara da Hungria, Itália, Alemanha e de Nova Iorque (na sede das Nações Unidas em 2007 por ocasião do International Holocaust Memorial Day). Recebeu várias distinções pelo Estado Húngaro, nomeadamente a Ordem de Mérito em 2003 e o Liszt Ferenc Prize em 2005.
Markus Stockhausen nasceu igualmente em 1957 e numa família de músicos, mas em Colónia, na Alemanha. É filho do compositor Karlheinz Stockhausen, um dos maiores e mais influentes ícones musicais da segunda metade do século XX. Estudou no Cologne Musikhochschule, tendo colaborado durante 25 anos com o pai (que escreveu várias peças para ele). Tão à-vontade no jazz como na música clássica e contemporânea, tem um percurso ligado ao jazz que remonta já a 1974, tendo desde então colaborado com músicos tão distintos e diversos quanto Rainer Brüninghaus, Enrique Diaz, o irmão Simon Stockhausen, Arild Andersen, Patrice Héral, Antoine Hervé ou a sua companheira, a clarinetista holandesa Tara Bouman.
A colaboração entre ambos iniciou-se em 1999 com um dueto, denominado “Landscapes” incluído no álbum de Snétberger “For My People”. Posteriormente tocaram juntos no memorável projecto “Joyosa” (com Arild Andersen e Patrice Héral) em 2004.
Este “Streams” é um disco melódico e nostálgico, em dueto de guitarra e trompete (ocasionalmente fliscórnio), de um lirismo quase latino (de que Rose será porventura o melhor exemplo, mas também o pequeno mas muito belo Suche, segue a mesma linha). Por vezes esse lirismo é compensado por uma construção complexa e multifacetada, conseguindo o duo, através da diversidade estrutural, estender o seu trabalho a campos mais contemporâneos e improvisados, como em Változatok ou em Obsession. Tal resultado é fruto da original metodologia aplicada pelos músicos: a gravação de uma pura jam session, de hora e meia de duração, onde dão largas à capacidade improvisadora de cada um e exploram os caminhos abertos pela colaboração. Depois da análise cuidada do trabalho realizado, escolheram os melhores momentos dessa reunião e desenvolveram-nos em composições mais cuidadas das quais resultou a gravação final. Desta forma asseguraram o carácter essencialmente inovador e experimental deste disco, não prescindindo contudo de uma linha melódica e conceptual bem patente no resultado final. Como alguém referiu, Streams, apesar de todas as suas influências e tempos, é um projecto de busca incessante da melodia, em todas as suas formas possíveis, resultando assim num trabalho atraente e apelativo do princípio até ao fim. Como num disco da ECM, nele não é possível vislumbrar sinais de raiva, violência ou agressão, não há ressentimentos, apenas beleza impressionista, numa procura estética da clareza de execução.
Não obstante as influências são muitas e distintas. Se é possível encontrar traços de lirismo latino nos já mencionados temas, também há influências orientais na litania “Ear to Ear”, bizantinas em “Hangolás”, do blues em “Strawberry Jam” ou do flamenco em “Toni's Zirkus”, quase sempre com resultados positivos. Onde a colaboração menos resulta, por se tornar mais fria e conceptual, é na abordagem de um universo mais abstracto e experimental em Xenos…
Em suma, uma obra escrita e gravada apenas com guitarra acústica e trompete mostra-se, à partida, um desafio temerário porquanto o carácter minimalista do duo, apesar das reconhecidas capacidades dos seus intérpretes, poderia comprometer seriamente o resultado final, pelo menos em termos de apelatividade e agradabilidade ao ouvinte. Snétberger e Stockhausen ultrapassaram com distinção essa dificuldade, assinando um disco belo e acessível.
Não obstante, não posso deixar de referir que gostei bem mais de os ouvir num ambiente de refinada composição polifónica, como foi o projecto Joyosa…

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