domingo, 4 de maio de 2008
Construções na Areia
Sei Miguel
3 de Maio de 2008, 21,30h
Pequeno Auditório da Culturgest (Lisboa)
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Assistir a um espectáculo de Sei Miguel é, antes de mais, aceitar o desafio de ser provocado (e diria mesmo abalado) nos alicerces fundamentais da nossa percepção musical.
Nas palavras do próprio músico o seu trabalho pretende apenas existir de facto, para além do comércio e da cultura, com uma coerência ética e técnica que o justifiquem (e o credibilizem). Para tal propõe um percurso “aparentemente técnico, mas na verdade poético” com uma noção temporal e rítmica que transcende o compasso e se alicerça na arquitectura e na dramaturgia.
Tal desiderato, mais do que levantar questões sobre a catalogação estilística do seu trabalho (sugeridas pela sua inclusão no ciclo “Isto é jazz?” da Culturgest, comissariado por Pedro Costa) leva-nos a reflexões mais profundas sobre o próprio conceito musical.
A música (arte das musas) define-se basicamente como uma sucessão de sons e silêncio organizada ao longo do tempo. Mas toda a combinação de sons e silêncio é música? Toda a música é arte? A música existe objectivamente ou é uma construção da consciência e percepção (do artista e do ouvinte)?
Uma abordagem naturalista defende a pré-existência musical. Ela existe de per si na natureza e não possui essencialmente carácter artístico. È o criador e o intérprete que a elevam ao estado de arte. A música é assim reduzida a um fenómeno natural e universal de índole matemática, susceptível de apropriação pelo músico como matéria-prima para a sua arte. Esta visão remonta já à teoria da ressonância natural de Marin Mersenne, expressa na sua obra L'harmonie universelle,de 1636.
Mas muitos defendem porém que não pode haver música sem ser percebida. A música será necessariamente uma manifestação humana de ordem estética e artística. A suprema arte de transmitir emoções como a definiu Charles LLoyd. Um verdadeiro sistema semiótico.
O trabalho de Sei Miguel parece beber do conceito naturalista a matéria-prima musical. Apropria-se do ruído, do silêncio, dos sons e dos tempos de uma forma pura e minimalista. Satisfaz-se com o que a natureza lhe oferece em termos musicais. Mas, como expressão artística, ordena-os escrupulosa e milimetricamente num sistema que visa transmitir o universo poético do autor. Sei Miguel faz construções na areia com os sons que capta da natureza e com elas tenta transmitir-nos a luminosidade azul das tardes da sua infância, a poesia de uma garrafa de cachaça “de carrinhos” ou o sabor do camarão frito apreciado com o pai num fim de tarde em São Paulo.
A tarefa, ainda que meritória, não se afigura fácil e o resultado mais ou menos conseguido depende muito da predisposição e sensibilidade do ouvinte. É que a proposta de Sei Miguel é essencialmente paradoxal: fazer poesia ou dramaturgia com recurso exclusivo à música. Será possível cantar uma obra arquitectónica? Filmar uma poesia? Escrever uma pintura? Construir fisicamente um romance?
Sei Miguel acredita que sim e faz desse paradoxo a essência da sua obra musical.
Pelo caminho não facilita em nada a tarefa do ouvinte.
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