domingo, 4 de maio de 2008

Filhos da Revolução


Júlio Resende 4teto (com Perico Sambeat)
3 de Maio de 2008 - 23.00h
Fábrica Braço de Prata - Sala Nietzsche (Lisboa)
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Depois das provocações poético-musicais de Sei Miguel (e até para descomprimir um pouco…) realizei uma visita há muito adiada à Fábrica Braço de Prata, onde assisti à apresentação do quarteto de Júlio Resende, em digressão nacional na companhia do saxofonista espanhol Perico Sambeat.
Mas antes de me pronunciar sobre os predicados do projecto “da Alma” do jovem e talentoso pianista algarvio, não posso deixar de consignar algumas notas a este novo espaço cultural lisboeta, até porque bem as merece.
Um projecto inovador das livrarias Eterno Retorno e Ler Devagar, que transformaram uma antiga fábrica de material de guerra (suprema ironia pacifista) num espaço cultural com 700 metros quadrados dedicados a livraria, cafetaria, ateliers, galerias de arte e salas de concertos (dos mais variados géneros e proveniências, da música étnica à erudita, passando pelo fado, jazz, rock e house – há uma tenda montada no enorme pátio que serve de palco a vários DJ durante os fins de semanas do Verão), onde de tudo acontece e acontece sempre algo. Ainda por cima dispõe de parque de estacionamento amplo e privativo…
A avaliar pela enorme afluência que presenciei, variedade e qualidade da programação oferecida (e até pela subtil suculência das tostas mistas servidas e pelo facto de existirem salas para fumadores – felizmente uma delas é a sala Nietzsche onde decorrem geralmente os concertos de jazz!) esta Fábrica Braço de Prata está condenada a tornar-se uma referência na noite lisboeta, ponto de encontro de todos aqueles que fazem da cultura um modo de vida.
Da parte que me toca, contem com a minha presença assídua e desfrutante.
Relativamente a Júlio Resende e apesar do som da Sala Nietzsche ficar aquém de outros em que tive o prazer de o ouvir (como o exemplar som do Hot Club), proporcionou um espectáculo memorável e plenamente conseguido, até pelo excelente ambiente criado nesta fábrica da cultura (com a devida vénia à Câmara Municipal da Amadora, pela abusiva apropriação onomástica). Numa sala ampla e arejada com enormes janelas fin de siécle e revestida de estantes e livros dos mais emblemáticos autores presentes e pretéritos, fomos convidados a desfrutar a música deste quarteto de músicos extraordinários, composto por Júlio Resende no piano, Perico Sambeat no sax tenor, João Custódio no contrabaixo e José Salgueiro na bateria interpretando os temas originais do seu único disco, editado em 2007. O espectáculo decorreu em ambiente de concerto de câmara, com a possibilidade de complementar a sonata com as leituras preferidas do ouvinte ou os melhores acepipes fornecidos pelo bar, sem esquecer um cigarro ocasional que sempre ajuda a completar o desfrute do momento. O que se poderia pedir mais?
O universo de Júlio Resende, construído segundo os cânones jazzísticos a partir do património musical nacional pós-revolucionário (é sintomática a abertura do seu disco com o tema “Filhos da Revolução” em que um ritmo marcial de fundo, evocativo da revolução dos cravos, se desenvolve num crescendo criativo e contagiante, pretexto para o aparecimento dos solos, num reconhecimento simbólico da riqueza cultural que a liberdade criativa e de expressão trouxe à sua geração de 70) encaixou na perfeição no local e no momento e bem assim no talento de Perico Sambeat o qual, através do seu inspirado e desenvolto fraseado no saxofone, prestou também homenagem (num dueto ibérico) ás conquistas criativas da democracia. João Custódio, no contrabaixo, provou ser um dos mais inspirados contrabaixistas nacionais da sua geração (também ele um filho da revolução). Tecnicamente soberbo, tem contudo uma expressividade rara que eleva o seu instrumento muito além das meras funções rítmicas e o tornam um parceiro incontornável desta viagem “da Alma”, através de solos e duetos onde a fantasia convive com o rigor com acentuada pertinência. Brilhante esteve também o trabalho de José Salgueiro na bateria. O músico que nos habituámos a ouvir na companhia de Carlos Barretto adaptou-se magnificamente a este universo musical pós-revolucionário de Júlio Resende e entendeu-se às mil maravilhas como os restantes intérpretes, quer assegurando as despesas rítmicas do concerto em sintonia com a inspirada presença de João Custódio no contrabaixo, quer enriquecendo a participação dos solistas na criação de texturas e contrapontos que melhor ajudaram a percepção da musicalidade do grupo, contribuindo decisivamente para que os mesmos soltassem as suas reconhecidas capacidades interpretativas.
Uma noite inspirada na Fábrica Braço de Prata.
Ao Poço do Bispo, em Lisboa.

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