quinta-feira, 31 de julho de 2008

Os Novos Silêncios de Cristal



Chick Corea & Gary Burton
The New Crystal Silence
Concord Records 2008

Este duplo CD marca o 35º aniversário da edição do disco homónimo que o duo gravou em 1972, para a ECM, e que constituiu a sua primeira colaboração (que no entanto foi estendida em múltiplas e regulares ocasiões de então para cá). Mas não é nem uma mera reedição comemorativa do mesmo nem tão pouco uma revisita refrescante aos temas constantes desse disco histórico. Na verdade apenas dois dos temas originais são agora revisitados: Crystal Silence e Señor Mouse, o primeiro numa versão orquestrada e o segundo interpretado em duo.
Este novo Crystal Silence divide-se claramente em duas partes completamente distintas, ambas registadas ao vivo. Um primeiro disco em que os solistas são acompanhados pela Orquestra Sinfónica de Sydney, com direcção e arranjos de Tim Garland, e um segundo disco, em duo, gravado no festival de Molde, na Noruega (à excepção do tema Senõr Mouse, gravado também ao vivo mas em Tenerife, nas ilhas Canárias).
O primeiro disco afirma-se sobretudo pela monumentalidade do trabalho de composição e orquestração exibido. Uma obra ambiciosa e tecnicamente soberba. O jazz, magnificamente representado pelos dois solistas, concerta-se com o trabalho orquestral de forma elegante, sofisticada mesmo, através de arranjos brilhantes que o elevam musicalmente, mas sem nunca o descaracterizar. Estamos assim perante um verdadeiro concerto para piano, vibrafone e orquestra, gravado ao vivo, onde várias influências confluem, lembrando ora os trabalhos de Gershwin quando os temas puxam para o blues (como é o caso de Duende), ora para manifestações impressionistas ou mesmo evocativas do nacionalismo musical que lembram os trabalhos orquestrais de compositores como Maurice Ravel, Igor Stravinsky ou Manuel de Falla. Isso é particularmente evidente nas abordagens ao flamenco em La Fiesta ou mesmo em Love Castle. Ocasionalmente surgem ainda ambientes mais cinemáticos onde as influências dos grandes compositores do cinema como John Williams (ou nas ambiências mais negras, de Danny Elfman) se tornam evidentes.
O segundo disco conta apenas com os dois solistas, adquirindo por isso um carácter necessariamente mais intimista. É um brilhante repositório do enorme talento e virtuosismo dos dois músicos envolvidos.
De uma alegria contagiante revela, a cada tema, as infindáveis capacidades técnicas dos músicos mas nunca de forma meramente gratuita ou exibicionista. Afigura-se, pelo contrário, como uma obra evocativa, não apenas de duas carreiras recheadas de talento e de sucesso, mas também de um património musical de que ambos são devedores, de Bud Powell a Bill Evans, passando por Nina Simone ou Wayner Shorter, ou pelos trabalhos de Corea com os Return to Forever como em No Mystery, Senõr Mouse, La Fiesta ou Brasília (esta do disco 1).
Estamos pois perante uma obra monumental e invulgar, um daqueles raros momentos mágicos em que a sensação de que se fez história transpira a cada compasso. Como amante do jazz "de câmara" confesso que me sinto mais em casa no intimismo do segundo disco. Porém tal não belisca minimamente a valia do trabalho registado no primeiro CD, absolutamente fantástico!
Um clássico, desde a hora em que foi colocado nos escaparates das lojas...
Absolutamente imperdível.



De Chick Corea já tudo foi dito e escrito, cotando-se como um dos mais importantes e prolíficos músicos dos últimos 40 anos, versando com a mesma mestria o jazz vanguardista, o bebop, a música infantil, a fusão, os sons latinos ou a música clássica.
Nasceu Armando Anthony Corea em Chelsea, Massachusetts, no dia 12 de Junho de 1941. Na sua formação (iniciada aos 4 anos de idade) foram importantes pianistas como Bud Powell (homenageado com um tema neste disco) ou Horace Silver (fundador dos Jazz Messangers, nascido Horace Ward Martin Tavares Silva, filho de pai cabo-verdeano, que homenageia no seu disco de 1965, The Cape-Verdean Blues). Ainda nos anos sessenta colaborou com ícones latinos como Mongo Santamaria ou Willie Bobo o que veio a revelar-se uma influência marcante ao longo da sua carreira. A sua estreia discográfica, como líder, aconteceu em 1966 com o disco “Tones for Joan’s Bones” com o trompetista Woody Shaw, o saxofonista e flautista Joe Farrell, o contrabaixista Steve Swallow e o baterista Joe Chambers. Em Março de 1968 grava Now He Sings, Now He Sobs, com Miroslav Vitous e Roy Haynes, um disco que ganhou o estatuto de clássico. Antes porém colaborou ainda com músicos tão importantes quanto Cal Tjader, Stan Getz, Dizzy Gillespie, Sarah Vaughn ou Donald Byrd, qualquer deles referências fundamentais neste período formativo da personalidade musical do jovem Chick Corea.
O ano de 1968 é marcante para Corea pois é chamado a substituir Herbie Hancock na banda de Miles Davis, com quem grava discos tão importantes na renovação do jazz quanto Filles de Kilimanjaro, In a Silent Way, Bitches Brew, Live-Evil e Live at the Fillmore East. Em finais de 1970 deixa, juntamente com o contrabaixista Dave Holland, o grupo de Miles Davis e funda, com Holland, o baterista Barry Altschul e o saxofonista Anthony Braxton, o quarteto Circle. Em 1971 muda novamente de direcção gravando a solo Piano Improvisations, Vol. 1 and 2, e fundando os Return do Forever com Stanley Clarke no baixo acústico, Joe Farrell no sax e flauta, Airto Moreira na bateria e percussão e a mulher deste, Flora Purim, na voz. Em Novembro de 1972, Chick grava o sublime Crystal Silence (pela ECM), a sua primeira colaboração com o vibrafonista Gary Burton.
A partir de 1973 os Return to Forever, nas suas sucessivas formações, vão-se afirmando, cada vez mais, como uma das mais importantes bandas de fusão, o novo movimento do jazz-rock tão em voga naqueles dias, com a entrada de músicos como Bill Connors, Lenny White ou o guitarrista virtuoso Al di Meola que, em 1974 e com apenas 19 anos, substitui Connors na formação liderada por Corea.
A ascensão do grupo a estrelas de rock não impediu contudo Corea de gravar, durante este período, discos mais pessoais e intimistas como The Leprechaun (Polydor, 1975) ou em 1976 My Spanish Heart, onde deu largas à sua paixão pelo flamenco. Em 1978 junta-se a Herbie Hancock e grava, a dois pianos, Homecoming para a Polydor e em 1980, pela Columbia, An Evening With Herbie Hancock and Chick Corea.
Em 1982 regressa ao flamenco em Compadres (com Paco de Lucia, Al di Meola, Lenny White e Stanley Clarke) e volta a colaborar com Gary Burton em Lyric Suite for Sextet, em que o duo se faz acompanhar por um quarteto de cordas.
No início de 1984 grava Three Quartets com Michael Brecker, Eddie Gomez e Steve Gadd e reedita o Trio com Miroslav Vitous e Roy Haynes, 13 anos depois, no disco Trio Music, gravado para a ECM.
A sua paixão pela fusão leva-o a fundar a Chick Corea Elektric Band, com o baterista Dave Weckl, o saxofonista Eric Marienthal, o baixista John Pattitucci e o guitarista Frank Gambale, gravando para a GRP várias obras entre 1986 e 1991. Mas Corea não esqueceu a música acústica mantendo, em simultâneo, a sua Akoustic Band, também com Patittucci e Weckl, com quem grava dois discos em 1989 e 1990.
Em 1992 Corea realiza o sonho antigo de fundar a sua própria editora, a Stretch Records, gravando, no início, projectos de Bob Berg, John Patitucci, Eddie Gomez e do guitarrista de blues Robben Ford. Os seus próprios trabalhos só transitam contudo para a Stretch, já integrada no universo da Concord Records, a partir de 1996, data em que termina a sua ligação à GRP. A sua primeira gravação para a Stretch foi Remembering Bud Powell, lançado em 1997, com o jovem saxofonista tenor Joshua Redman, Kenny Garrett no sax alto, Wallace Roney no trompete, Christian McBride no contrabaixo e Roy Haynes na bateria (que chegou a tocar com Powell nos anos 60). Ainda nesse ano grava com a Orquestra de Câmara de St. Paul, dirigida por Bobby McFerrin, com Gary Burton o disco Native Sense–The New Duets, e funda o sexteto Origin com Avishai Cohen, Steve Wilson, Steve Davis, Tim Garland e Jeff Ballard.
O novo milénio começa para Corea com “Corea Concerto” (Sony Classical, 2000) gravado com a London Philharmonic Orchestra e onde Chick apresenta o seu Concerto nº 1 para piano e orquestra, além de uma versão orquestrada de Spain.
Em 2001 apresenta um novo trio com o baterista Jeff Ballard e o contrabaixista israelita Avishai Cohen, em Past, Present & Futures (Stretch), envolvendo-se também em trabalhos em dueto com Bobby McFerrin, Gary Burton e o cubano Gonzalo Rubalcaba.
Em 2004 Corea reúne novamente a sua Elektric Band para o projecto, baseado na obra de ficção científica de L. Ron Hubbard, To The Stars, que prossegue em 2005 em The Ultimate Adventure, um exótica mistura de flamenco, de influências da música do Norte de África e do Médio Oriente.
Ao longo da sua carreira recebeu já 11 Grammys entre muitas outras distinções por todo o mundo.



Gary Burton nasceu em Indiana em 1943 e foi um auto didacta do vibrafone até entrar, muito tardiamente, no Berklee College of Music em Boston. Grava pela primeira vez aos 17 anos de idade, em Nashville, com os guitarristas Hank Garland e Chet Atkins. Toca com George Shearing e depois com Stan Getz, entre 1964 e 1966. Em 1967 deixa Getz e forma o seu próprio quarteto, com quem grava três discos para a RCA e estabelece uma sólida reputação como músico de fusão entre o jazz e o rock. É eleito, em 1968, Jazzman of the Year pela revista Down Beat. O Burton Quartet foi-se alargando e incluiu, nos anos 70, o jovem guitarrista Pat Metheny. Ainda neste período Burton grava em dueto com o contrabaixista Steve Swallow, o guitarrista Ralph Towner e o pianista Chick Corea.
Inicia também em 1971 a sua carreira como professor de percussão e improvisação no Berklee College of Music. Em 1985 é elevado a Dean of Curriculum, em 1989 recebe um doutoramento honoris causa e, em 1996, é eleito vice-presidente executivo da instituição. Abandona contudo o ensino em 2003.
Durante as décadas de 80 e 90 Burton grava para a GRP várias obras de que se destacam as colaborações com Pat Metheny e Chick Corea. A partir de 1997 grava, já pela Concord, Departure e Native Sense bem como dois discos dedicados a Astor Piazzolla, e mais recentemente, em 2002, dedica-se ao repertório clássico na companhia do pianista japonês Makoto Ozone.
A partir de 2003, liberto do seu trabalho como professor, funda o grupo Generations, composto por jovens talentos como o guitarrista de 16 anos, Julian Lage, ou o pianista russo Vadim Nevelovskyi, com quem tem apresentado, desde então, vários trabalhos, que intercala com colaborações com velhos e novos amigos como Pat Metheny, Chick Corea, Steve Swallow, António Sanchez, Makoto Ozone, o compositor e pianista espanhol Polo Orti, ou o acordeonista francês Richard Galliano.
Foi já galardoado com cinco Grammys, entre muitas outras distinções.

A ilustrar esta obra prima de Chick Corea e Gary Burton deixo-vos com o tema Waltz for Debby, um original de Bill Evans, composto nos anos 60, acompanhado de maravilhosas fotografias a preto e branco de Nova Iorque, da autoria de Didier Vanderperre.

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