segunda-feira, 14 de julho de 2008

Sons de Sefarad (4)



Fontes documentais e arqueológicas indiciam que a presença judaica na Tunísia remonta há mais de 2.300 anos. O território é mesmo mencionado no Talmud e noutros escritos sagrados judaicos. As obras de Josephus (historiador romano de origem judaica, do séc. I da nossa era, também conhecido como Yosef Ben Matityahu ou Titus Flavius Josephus, que deixou várias obras dedicadas às Guerras Judaicas, escritas entre os anos 66 e 94 depois de Cristo), falam na deportação de 30.000 judeus para a Tunísia pelo imperador Tito e foram descobertos vestígios de um cemitério judaico e de uma sinagoga perto das ruínas de Cartago.
Após a conquista árabe, em 642, os judeus foram tratados com maior equidade o que levou ao florescimento e prosperidade da comunidade judaica tunisina, designadamente através do comércio das afamadas sedas daquele país. A riqueza atraiu emigrantes judaicos vindos sobretudo das penínsulas itálica e ibérica, estando tais imigrantes na origem da criação das cidades costeiras de Sousse, Monastir, Sfax e Gabes.
A cidade de Kairouan assistiu mesmo à fundação de uma das mais importantes academias judaicas da idade média, onde pontificaram académicos importantes como os Rabbi Jacob e Nissim ou o médico mistico Abu Sahl Dunash ben Tamin.
As dinastias árabes radicais do séc XII, dos Almorávidas e dos Almoadas, promoveram contudo acesas perseguições aos judeus tunisinos, com conversões forçadas e assassinatos em massa de muitos milhares de judeus, no Maghreb como na península ibérica. Mas a dinastia posterior dos Hafsidas mostrou-se mais tolerante, permitindo o culto judaico (embora instituindo leis anti-semitas como a djezia, imposto especial incidente sobre os rendimentos da população hebraica).
Após a conquista de Granada pelos reis católicos e a consequente expulsão dos judeus sefarditas de Espanha e, em 1497, de Portugal, muitos refugiaram-se na Tunísia, incluindo académicos importantes como Abraham Zacuto (matemático e astrónomo, colaborador de Cristóvão Colombo) que escreve em Tunes e em 1504 uma das suas mais afamadas obras, Sefer Yuhasin (O Livro da Genealogia).
O domínio otomano sobre a Tunísia, iniciado em 1573, foi em geral bem acolhido pela comunidade judaica, que atravessa, sob a égide turca, um dos períodos mais prósperos da sua história. É desta altura contudo a divisão da comunidade em dois grupos distintos: os Touansa (nativos da Tunísia) e os Gornim (imigrantes oriundos sobretudo de Itália e em particular da cidade de Livorno). Estes últimos, como estrangeiros, gozavam de privilégios considerados inaceitáveis pela comunidade nativa, como usarem roupas europeias (ao invés dos trajes tradicionais judaicos impostos pelas leis segregativas que vigoravam desde os tempos dos Hafsidas) ou poderem estabelecer residência fora dos bairros judaicos das cidades. Estes e outros conflitos levaram à separação de ambas as comunidades, as quais passaram a possuir sinagogas e cemitérios distintos, sobretudo a partir do Séc. XVIII.
Após a Conferência de Berlim de 1878 a Tunísia passou a constituir um protectorado francês. Contudo o poder político foi mantido nas mãos do Bey de Tunes, que já exercia anteriormente a soberania como representante dos turcos. Ao contrário do que tinha feito na Argélia, a França negou a cidadania francesa aos judeus tunisinos até 1923, o que levou a conflitos com o exército francês, sobretudo após a recusa de muitos judeus em envergarem o uniforme francês durante a Primeira Guerra Mundial. Com a conquista alemã e o governo de Vichy foram impostas leis anti-semitas na Tunísia e perpetradas perseguições aos judeus tunisinos, tendo sido enviados para campos de trabalho alemães cerca de 5.000 jovens. No entanto a retirada forçada do exército alemão em Março de 1943 impediu que a “solução final” fosse igualmente aplicada nas comunidades judaicas da Tunísia. Estima-se que, em 1945, existiam cerca de 105.000 judeus na Tunísia (só em Tunes concentravam-se cerca de 65.000).
A luta pela independência contou com forte apoio judaico e um dos mais importantes estrategas da revolução, André Barouche, era judeu (seria ministro no primeiro governo independente liderado pelo Presidente Habib Bourguiba, depois da independência do território em 1956, concedida pelo primeiro-ministro francês Pierre Mendès-France, também ele judeu sefardita).
Contudo após a crise do Suez em 1956 e sobretudo após a guerra dos seis dias em 1967, as perseguições aos judeus tunisinos recomeçaram. Dos 105.000 judeus existentes na Tunísia em 1945, restam actualmente cerca de 3.000, tendo os restantes emigrado sobretudo para França e Israel.

Vinte e três séculos de história judaica na Tunísia não podem passar incólumes nas tradições daquele país. Pelo que também na música tunisina se vislumbram ecos de Sefarad… Estão contudo diluídos nos muitos séculos de domínio árabe e turco.



Anouar Brahem nasceu em 1957 em Halfaouine, na Medina de Tunes. Teve preparação musical árabe clássica no Conservatório de Tunes, no oud, o alaúde árabe. Mas cedo demonstrou interesse por outros universos musicais: do médio oriente, da Pérsia e da Índia e mais tarde do jazz. Em 1981 mudou-se para Paris, tendo colaborado em bandas sonoras de Maurice Béjart e Gabriel Yared. Em 1985 recebeu o “Grand Prix National de la Musique” do Governo Tunisino e dois anos depois é nomeado director da EMVT (a orquestra tradicional nacional de Tunes), com a qual actuou em 1988, na abertura do festival de Cartago, perante uma audiência de 10.000 pessoas! Em 1990 deixa a EMVT e ruma aos Estados Unidos, onde conhece Manfred Eicher e assina contrato com a ECM. Esta colaboração já levou à edição de oito discos pela editora alemã, com grande aceitação do público e da imprensa, e a colaborações com importantes músicos internacionais de jazz como Jan Garbarek, Richard Galliano, Palle Danielsson, Jon Christensen, François Couturier, John Surman, Manu Katche, Jean-Louis Matinier ou Dave Holland, entre outros.

Astrakan Café (ECM, 2000) é o seu sexto disco pela ECM. Uma obra madura onde Brahem revisita as raízes orientais e mediterrânicas da sua música, na companhia do clarinetista turco (de origem cigana) Barbaros Erköse e do percussionista tunisino Lassad Hosni. O tema homónimo é um original seu que, pese embora não assumidas, revela notórias influências das músicas sefardita e judaica, talvez fruto da presença de Barbaros Erköse no trio.

Deixo-vos pois com um tema tunisino informado dos sons de Sefarad, acompanhado de fotos daquele país, da autoria de Enzo Priore.

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