sexta-feira, 11 de julho de 2008

Sons de Sefarad (1)



Sefarad é o nome hebraico dado à região que correspondia ao Al-Andalus Ibérico, ou seja, às antigas Taifas do Califado de Córdoba. Os sábios desta região, ao assinarem, colocavam «sefardi» depois dos respectivos nomes, de onde proveio o termo sefardita, usado para designar os descendentes de Judeus originários de Portugal e Espanha e bem assim a antiga cultura judaica peninsular.
Os sefarditas fugiram das perseguições que lhes foram movidas pela inquisição, dirigindo-se para o Mediterrâneo Oriental (Itália, Grécia, Turquia e Palestina), para o norte de África e mais tarde para o Novo Mundo, principalmente Brasil, Argentina e México, onde actualmente se concentram milhares de descendentes seus.
Os sefarditas costumam dividir-se entre Ocidentais e Orientais. Os Ocidentais são os chamados judeus hispano-portugueses, enquanto os orientais são os sefardim, que viveram sob a égide do Império Otomano.
Após a guerra israelo-árabe de 1967, muitos judeus oriundos do mundo árabe rumaram a Israel onde constituem uma comunidade culturalmente diferenciada, também conhecida entre os asquenazitas (os judeus de rito alemão, oriundos da Europa Central e Oriental, sobreviventes do genocídio nazi) como sefarditas.
Esta designação é, no entanto, incorrecta, porquanto apesar de terem existido importantes comunidades sefarditas estabelecidas no norte de África (na Tunísia, em Marrocos e no Egipto, sobretudo) após as perseguições perpetradas pela Inquisição, a maioria dos judeus africanos pertence a uma comunidade denominada Mizrachim (de Misr, designação hebraica do Egipto) de rito diferenciado do Sefardita.
Este distingue-se dos restantes por se opor à Cabala e possuir uma liturgia distinta e bem disciplinada, com melodias suaves, também conhecido por rito ocidental ou castelhano-português.
É pois na liturgia sefardita que assenta a origem da sua música, suave e melodiosa, nostálgica e profunda, que tanto influenciou o folclore mediterrânico dos países onde a comunidade floresceu, designadamente o português, espanhol, italiano (do Mezzogiorno, siciliano e sardo, sobretudo) e o otomano que persiste na tradição grega, turca, arménia, síria, libanesa e claro na palestiniana e israelita. Também nas margens sul do Mediterrâneo subsistem vestígios da tradição musical sefardita, sobretudo na Tunísia e no Egipto.
Apesar da origem poder ser litúrgica, a verdade é que a música sefardita cedo se laicizou. E é sobretudo a música popular, canções de amor e romance ou narrativas populares dos feitos heróicos biblícos, que deixou marca entre as culturas mediterrânicas, nos vários caminhos da diáspora sefardita.

Perdoem-me este esboço de lição de história mas quis o acaso que eu presenciasse a deslumbrante apresentação do trio Nascer (João Paulo, Ricardo Dias e Peter Epstein) precisamente quando revolvia a minha colecção de música em busca de influências sefarditas, fruto da minha recente descoberta e paixão pela música do grande contrabaixista israelita Avishai Cohen.
Foi o pretexto que faltava para iniciar uma pequena viagem pelas influências sefarditas na música mediterrânica actual, que conto apresentar-vos em sucessivos fascículos virtuais, sendo este o inaugural.

A tradição musical luso-judaica

Poucas culturas musicais europeias são tão deficitárias da tradição sefardita como a portuguesa. Os sons melancólicos e nostálgicos que nos habituámos a ouvir na boca do povo, recolhidos exemplarmente por musicólogos como Michel Giacometti e cantados por trovadores como José Afonso, são, na sua essência, fortemente influenciados pelas reminiscências judaicas deixadas no século XVI pelas comunidades sefardis, em fuga da fúria popular acendida (muitas vezes literalmente) pela Inquisição.
Tal como as alheiras de Mirandela (criação judaica para simular a conversão forçada ao cristianismo dos chamados cripto-judeus, já que todos sabem que aos judeus não é permitido comer chouriço por ser confeccionado com carne de porco) também a melancólica saudade lusitana, na sua vertente musical, parece ter origem judaica ou pelo menos forte influência sefardita. Das litanias transmontanas ao cantochão alentejano, passando pelas baladas de Coimbra e pelo fado menor lisboeta, há um incontornável perfume “marrano” (termo pejorativo que significa literalmente porco, e pelo qual eram conhecidos os judeus conversos, precisamente por não comerem carne de porco) na música portuguesa, que urge redescobrir.



Assim, no início desta viagem pelas influências sefarditas na música mediterrânica, proponho precisamente começar por Portugal e pelo trio Nascer: João Paulo no piano, Ricardo Dias no acordeão e o norte-americano (não sei se também ele de origem sefardita) Peter Epstein no saxofone.

O tema “Durme” é uma melodia tradicional sefardita, originariamente uma canção de embalar, recuperada por Ricardo Dias com arranjos de João Paulo. Podem encontrá-la no disco “Nascer” (MA Recordings, 2001) e vai ser acompanhada de fotos algarvias (o Algarve continha uma das mais importantes comunidades sefarditas portuguesas no séc. XV, designadamente a cidade de Tavira) da autoria de Pedro Libório.

Trio Nascer - Durme


Desafio-vos agora a compará-lo com um tema tradicional português denominado Deolinda, também ele incluído no disco “Nascer” (MA Recordings, 2001) e interpretado por João Paulo no piano, Ricardo Dias no acordeão e Peter Epstein no saxofone, desta feita com arranjo de Ricardo Dias. Digam-me se estamos ou não perante a mesma cultura musical. As fotos alentejanas são da minha autoria.

Trio Nascer - Deolinda

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