quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Os Desertos de Valhalla (Pintados por Vermeer de Delft)



Jan Garbarek
In Praise Of Dreams
ECM 2004

In Praise of Dreams foi o primeiro disco, como líder, lançado por este extraordinário saxofonista norueguês, de origem polaca, depois de um longo interregno de seis anos. E a aposta foi arrojada. Para acompanhá-lo escolheu a excelente violista norte-americana, de origem arménia, Kim Kashkashian, mais habituada a contextos eruditos do que ao jazz, além do inevitável e exuberante baterista francês Manu Katché, parceiro habitual de Jan Garbarek no seu quarteto. Nas teclas, habitualmente entregues ao alemão Rainer Brüninghaus, surge o próprio Jan Garbarek e a viola de Kashkashian é chamada a ocupar a função do contrabaixo, usualmente nas mãos do também alemão Eberhard Weber.
Mas são por vezes estas ousadias que fazem os grandes discos. O lirismo introduzido pela viola casa na perfeição com o som primordial característico do druida Garbarek e o resultado é um dos mais belos discos da carreira, já longa e recheada de sucessos, do saxofonista.
Até a insistência de Garbarek nos samplers e sintetizadores, anátema numa época em que o “tudo acústico” está na moda, consegue ter momentos verdadeiramente sublimes, contribuindo de forma decisiva para a criação do ambiente onírico, tão característico do som a que nos habituou. Os sonhos de Garbarek, que o título evoca, são construídos de forma quase cinemática por ambientes nórdicos de fogo e gelo, por combates titânicos entre os Deuses de Ragnarök, mas também pela suavidade encantadora dos desertos de Valhalla, para onde as valquírias de Garbarek nos transportam, quais almas de guerreiros mortos em combate, para junto do todo poderoso Odin e seus pares, no Olimpo gelado de Asgard.
Neste disco Garbarek mostra-se profundamente melódico, enfatizando as suas enormes capacidades como compositor e orquestrador e apostando claramente na adição de novas cores e texturas à sua já ampla paleta musical, construídas pela brilhante fusão de elementos acústicos e electrónicos. Peça fundamental dessa construção é a viola de Kashkashian. A sensibilidade do seu fraseado, a subtileza e a riqueza introduzida pelo som produzido pela viola parece elevar a música de Garbarek, inspirando-o para alguns solos e improvisações notáveis.
Os dois músicos já tinham colaborado anteriormente, com a grega Eleni Karaindrou, na gravação das composições desta para a banda sonora dos filmes “The Beekeeper” e “Ulysses’ Gaze”, do realizador Theo Angelopoulos e ainda com o compositor georgiano Giya Kancheli, no seu trabalho orquestral “Night Prayers”. A mais recente colaboração ocorreu contudo no Festival de Bergen, em 1999, em que os dois músicos homenagearam o compositor arménio Tigran Mansurian com uma apresentação em duo versando o repertório deste, inspirado no folclore tradicional daquele país. Mais tarde Mansurian compôs a peça “Lachrymae”, incluída no seu álbum “Monodia”, especialmente para o saxofone de Garbarek e a viola de Kashkashian. A química foi instantânea, deixando no par a vontade de agendar novas colaborações. A ocasião surgiu finalmente em 2003 com a gravação deste “In Praise of Dreams”, agora sob a batuta experiente e mais swingada de Jan Garbarek.
O trio completa-se com Manu Katché, o baterista que Garbarek conheceu em 1987, através de Manfred Eicher, e que desde então não tem deixado de integrar nos seus sucessivos ensembles. A natureza ambiental e poética do seu trabalho, mas sobretudo a sua enorme capacidade para construir padrões rítmicos e desenvolvê-los através de pequenas, quase minimalísticas, nuances, fazem deste francês, com raízes na Costa do Marfim, o complemento ideal para o onirísmo musical de Garbarek e Kim Kashkashian.
Um disco fundamental.
O seu título advém, segundo Garbarek, de um poema de Wislawa Syzmborska, que começa assim: "Nos meus sonhos, eu pinto como Vermeer de Delft". Dificilmente encontraríamos uma imagem mais adequada para ilustrar este trabalho.

Deixo como habitualmente um vídeo a fechar esta minha crónica. O tema, da autoria de Garbarek, chama-se “One Goes There Alone” e está acompanhado de belas fotografias das terras altas escocesas, da responsabilidade de Dimitri V.

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