quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Sheila Jordan no Hot Club



Sheila Jordan
Hot Club de Portugal (Lisboa)
8 de Outubro de 2008 - 23.00h
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Ontem foi dia de festa no Hot. Não por se comemorar alguma efeméride especial (apesar das comemorações dos 60 anos do Clube se prolongarem até ao final do ano) mas simplesmente porque assim aconteceu. Espontaneamente.
A razão foi simples, dá pelo nome de Sheila Jordan e faz 80 anos de idade no mês que vem. A sua presença foi suficiente para fazer confluir à velha cave da Praça da Alegria, numa quarta-feira à noite, centenas de melómanos sedentos do seu ancorado saber, de rever amigos e passar uma noite inesquecível na companhia de uma grande senhora do jazz.
Uma concentração de músicos, de produtores, de críticos e de candidatos a tal pouco usual, mesmo para um espaço tão especial como o Hot Club de Portugal.
E que noite! Sheila Jordan brindou o público com uma exibição de mais de três horas de concerto (esta mulher tem uma resistência aos 80, capaz de empalidecer de vergonha o mais robusto dos quarentões), plena de presença, de sabedoria, de boa disposição, de capacidade de improviso e de comunicação e sobretudo carregada de swing.
Uma lenda viva que vive ainda e sempre para a música. Como ela própria afirma, é a música que a mantém viva, que lhe dá energia para cantar, para puxar pelos músicos como poucas (a naturalidade com que o swing brota daquela voz é verdadeiramente única e proporciona um amplo espaço de improviso aos afortunados músicos que a acompanham – a cantora, terror do músico inexperiente, sedento do brilho efémero do improviso, dá lugar à instrumentista da voz, que completa com o seu instrumento, sem nunca se sobrepor, o quarteto de jazz em palco).
Num ambiente típico de clube, que a cantora comparou por inúmeras ocasiões aos seus bem conhecidos clubes novaiorquinos, sobretudo ao Village Vanguard onde actuou anos a fio, assistimos a um desfilar apurado do repertório da cantora que acompanhou Charlie Parker nos anos 40 em ritmo de tal modo descontraído e bem humorado que dir-se-ia estarmos perante uma jam session de músicos que se conhecem há décadas. E no entanto Sheila Jordan chegou a Portugal há menos de uma semana!
Os felizes contemplados com o privilégio de acompanhar esta grande senhora do jazz foram os irmãos Bernardo e João Moreira, respectivamente no contrabaixo e no fliscórnio (num dos temas, o medley Song for Miles/It Never Entered My Mind, usou o trompete), o mais bluesy dos pianistas nacionais, Filipe Melo, e Bruno Pedroso na bateria.
E foram verdadeiramente felizes pela escolha, porquanto Sheila Jordan soube puxar por eles até aos limites e todos, sem excepção, rubricaram exibições de altíssimo gabarito. Bernardo Moreira esteve majestático, com uma técnica que roçou a perfeição, solos fenomenais no seu estilo perfeccionista e uma notável capacidade de liderança do quarteto que proporcionou a Sheila Jordan um acompanhamento verdadeiramente à altura dos seus pergaminhos. Muito bem esteve também João Moreira, uma presença surpresa (face ao constante do programa) e que se mostrou de enorme pertinência. Com o fliscórnio evocou os fantasmas de Clifford Brown e Louis Armstrong, quando os temas puxavam ao blues, e com o trompete o de Miles Davis, quando o cool invadiu a apresentação. E sobretudo cotou-se como uma enorme mais valia, complementando com a expressividade dos seus solos quer o intimismo quer a exuberância debitada pela voz experiente de Sheila Jordan. Filipe Melo no piano esteve como gosta de estar: liberto sempre que possível das pautas para se lançar desenfreado aos seus inconfundíveis riffs de blues. Possuidor de um admirável swing e uma personalidade exuberante, também ele soube evocar os mestres do blues-jazz e rubricar uma notável apresentação.
Falta falar de Bruno Pedroso que, conhecedor profundo dos músicos em palco e dos segredos dos ritmos do swing, fez com Bernardo Moreira uma dupla memorável na assunção das despesas rítmicas do concerto, sem perder várias oportunidades para se apresentar em solo, onde o seu estilo contido e perfeccionista lhe permitiu demonstrar com mestria porque é um dos mais reputados bateristas nacionais da actualidade.
E assim se fez jazz no Hot, demonstrando porque razão este club conquistou, desde há 60 anos, um lugar muito especial no coração dos músicos e melómanos deste país.

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