quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Festival Expresso Oriente


Festival Expresso Oriente
Música de Este a Oeste
OrchestrUtopica – Drumming
Sheng - Wu Wei
Maestro - Jean-Sebastien Béreau
30 de Setembro de 2008, 21.30h
Grande Auditório da Culturgest
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Se há algo que eu gostaria que transparecesse destas linhas que escrevo é a partilha de uma visão transversal da música e da arte enquanto fenómenos estéticos. A recusa de compartimentos e o derrube de convenções é cada vez mais uma preocupação dos músicos e deve, na minha opinião, ser igualmente um objectivo, senão uma exigência, do esteta, onde modestamente me incluo.
Nesse contexto a OrchestrUtopica aparece como uma referência rara no nosso panorama musical. Pela originalidade da formação e repertório. Pela ousadia na escolha das obras que apresenta. Pela disponibilidade demonstrada para colaborar com músicos oriundos de universos estéticos diversos e distantes, expressão máxima dessa exigida transversalidade.
A música dita erudita sempre foi credora das emanações artísticas ditas populares, do mesmo modo que a música popular sempre bebeu inspiração e buscou referências na erudição musical. A criação artística não vive de modelos fechados sobre si mesmos, autistas, mas antes da partilha de experiências, da busca incessante do novo.
Assim os contornos daquilo que é hoje a música são manifestamente ténues e recorrentemente revistos, à luz de novos contributos oriundos dos mais variados quadrantes estéticos e geográficos. O processo ultrapassa a mera discussão de estilos e atinge o próprio âmago do conceito musical.
Nesta apresentação na Culturgest procurou mostrar-se diferentes modos de pensar a música tendo como mote o cruzamento e confronto das abordagens ocidental e oriental.
No entanto, e com uma única excepção, não se fez um verdadeiro cheque ao molde ocidental que, de forma globalizada, estabelece há muito o padrão dominante no que respeita à erudição musical.
Apresentou-se compositores (alguns em estreia nacional) que ousaram estabelecer uma ponte entre o ocidente e o oriente musicais. Mas essa ponte, fruto de uma educação musical marcadamente ocidental (mesmo no caso dos compositores de origem oriental), foi edificada com recurso aos instrumentos, técnicas de composição, linguagens e pensamento estético-musical característicos do molde ocidental, o que de algum modo compromete o objectivo.
É certo que na nova música a descoberta de diferenças específicas entre os vários modos geográficos de racionalizar a música aparece mais esbatida, senão mesmo invisível. Mas se assim é o objectivo nasce impossível e a ponte não conduz a nenhum outro lugar, senão ao ponto de partida.
Mais do que um confronto entre Ocidente e Oriente as obras tocadas manifestaram uma reflexão profunda sobre as bases conceptuais da música em geral e da música erudita em particular. Quando um compositor como Naresh Sohal, na sua obra Hexad, deixa o valor do tempo inteiramente aos instrumentistas, ou quando a compositora coreana Unsuk Chin constrói Fantaisie Méchanique com base em dois conceitos opostos, a improvisação e as estruturas pré-determinadas, não é tanto com a lógica oriental que a música se confronta, mas consigo mesma, com os seus pressupostos teóricos e históricos! Sendo essa, a meu ver, a principal reflexão suscitada pela apresentação.
Mas eu mencionei uma excepção. O momento mais interessante do concerto, e aquele onde além das contradições conceptuais se sentiu verdadeiramente a presença de uma lógica completamente estranha ao molde ocidental, foi protagonizado pela obra Water Music do chinês Tan Dun, interpretada pelos percussionistas do grupo Drumming. Aqui a música brotou espontânea, inesperada e organicamente de uma exploração ritualística da água e de outros materiais (como o papel, o metal ou o plástico), numa evocação zen da cultura oriental. Claro que também aqui as provocações conceptuais surgiram fulgurantemente. Não obstante foi o momento em que o Oriente manifestamente irrompeu na sala de forma marcante e mais fortemente aplaudida.

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