sábado, 25 de abril de 2009

Integridades



Uri Caine Trio
The Goldberg Variations
24 de Abril de 2009, 23.30h
Grande Auditório do CCB (Lisboa)
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Nascido em Filadélfia em 1956, Uri Caine estudou com Bernard Peiffer, George Rochberg e George Crumb. Gravou já 19 discos como líder e dedicou-se particularmente ao repertório clássico de compositores como Mahler, Wagner, Beethoven, Bach e Schumann, embora tratando-os de forma marcadamente original e frequentemente controversa. Compositor residente na Los Angeles Chamber Orchestra, Caine sente-se igualmente à-vontade nos ambientes clássico e jazzístico. Mas é sobretudo quando decide combinar os dois que a sua música mais tem cativado o interesse da crítica e do público.
Reveste-se pois da maior pertinência a sua participação na edição deste ano de “Os Dias da Música em Belém”, dedicada ao genial mestre do barroco.
Uri Caine apresentou a sua primeira versão das variações Goldberg de Bach em 2000, quando editou um disco duplo pela Winter & Winter, num ambicioso projecto electro-acústico inspirado nas gravações de 1955 do pianista Glenn Gould e que contou com a participação de David Moss, Dean Bowman, Barbara Walker, Tracie Morris, Sadiq Bey, Greg Osby, Paul Plunkett, Ralph Alessi, Josh Roseman, Bob Stewart, Cordula Breuer, Don Byron, Liz Alessi, Annegret Siedel, Gregor Hubner, Todd Reynolds, Michael Friemuth, Drew Gress, Reid Anderson, James Genus, Ralph Peterson, Paulo Braga, Milton Cardona e os ensembles Kettwinger Bach Ensemble, Koln String Quartet e Quartetto Italiano Di Viole Da Gamba.
Os instrumentos utilizados vão desde o alaúde e o cravo até aos computadores e sintetizadores, e os nomes escolhidos abrangem um enorme leque de estilos e influências, que vão desde a música barroca ao techno, passando pelo romantismo e pelo free jazz. Dificilmente poderíamos imaginar uma abordagem mais inovadora e arrojada do universo musical barroco.
Este projecto foi qualificado na revista Downbeat como um motim sobre a obra de Bach, no qual não é a voz do compositor que ecoa nos teclados e arranjos de Caine mas sim a vital e imaginativa voz de Caine que soa através da música de Bach.
Penso que esta frase feliz resume de forma elucidativa o trabalho musical a que se propôs Uri Caine. Não se trata de uma mera adaptação jazz da composição clássica, ao respeitável estilo de Jacques Loussier (que apesar do enorme sucesso comprovado por mais de seis milhões de discos vendidos em 50 anos de carreira, continua a afirmar “não sou um músico de jazz, interpreto Bach através do jazz e de outras linguagens não clássicas”). Caine é indubitavelmente um músico de jazz e como tal ousou muito mais: reinventar as Variações Goldberg (seguramente um pilar incontestado da tradição musical europeia) à luz da sua própria visão musical.
E se este desígnio constitui já um anátema para os mais puristas defensores da “integridade” da obra bachiana, o que dizer do facto da visão musical de Caine passar pela adopção de estéticas populares como o jazz, o blues, o samba, a bossanova, o tango, o mambo e até a música klezmer, para as quais aliás não se coíbe de fazer uso dos mais elaborados recursos eruditos quer na área da composição quer na da interpretação?
Uma breve leitura do programa da noite é já suficiente para suscitar o escândalo de conservadores e a curiosidade de vanguardistas: The Hot 6 variation, The Bass Variation, The Nobody Knows Variation, Rachmaninoff, Luther’s Nightmare Variation, The Bossa Variation, The Drum Variation, The Tango Variation, Verdi, The Blessings Variation, entre outras.
Caine não se limita a “reinventar” Bach à luz dos seus próprios conceitos musicais, ousa mesmo adoptar maneirismos e interpretá-lo à luz da ilustração alheia (Rachmaninoff ou Verdi)!
Iniciativa temerária.
Por outro lado concede-nos a honra de testemunhar um novo passo nesta sua cruzada de apropriação de Bach: a estreia de um novo arranjo do seu trabalho, agora adaptado para um simples trio de jazz composto por ele próprio no piano, por John Hebert no contrabaixo e por Ben Perowsky na bateria. A sua segurança é tal que não hesita em usar o palco do Grande Auditório do CCB como estúdio de gravação e o seu público como cobaia para a nova experiência.
Não disse uma palavra durante todo o concerto e as variações sucederam-se a um ritmo alucinante, durante uma hora e meia em que quase não houve tempo para aplaudir… A prova vai provavelmente ser editada em disco, para os mais incrédulos.
O que dizer de tanta ousadia?
- Este homem ou é um génio ou um louco!
Não duvido que muitos subscrevam a segunda opinião. Eu resolutamente não o faço.
Nada tenho contra a genial interpretação de Glenn Gould de uma das mais belas obras legadas por Bach à posteridade. Sou aliás um alegre possuidor de um exemplar que oiço sempre que posso. Mas como amante de jazz tenho forçosamente que acreditar na criatividade e na liberdade artística. No dia em que acreditarmos na cristalização da arte, na beatificação do classicismo, em suma, na idolatria musical, matámos a galinha dos ovos de ouro!
Deixo pois aqui a minha humilde apologia da diversidade e do génio da ousadia Uri Caineana.
Estejam seguros: se alguma vez este extraordinário concerto chegar aos escaparates da Fnac e se dispuserem a ouvi-lo, são meus os mais entusiásticos aplausos que vão ouvir no final!