domingo, 22 de junho de 2008

Jazz Kitsch



Carlos Bica + Matéria Prima
21 de Junho de 2008, 21.30h
Grande Auditório da Culturgest (Lisboa)
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Uma tournée nacional de Carlos Bica, ainda para mais com um projecto musical novo, é um acontecimento digno de destaque, como já tive ocasião de expressar nestas mesmas páginas.
Dividido entre a Alemanha e Portugal, com passagens frequentes pelos mais variados palcos do mundo (ainda esta semana vai iniciar uma tournée de cinco concertos por terras canadianas, com o trio Azul, de que fazem ainda parte Frank Möbus e Jim Black), Bica é hoje um dos mais internacionais músicos de jazz portugueses e, permito-me acrescentar, de forma inteiramente merecida.
A sua abordagem da música, e do contrabaixo em particular, desenvolve-se, fruto da sua enorme criatividade e das múltiplas identidades recolhidas, de modo peculiar e extremamente original, algo raro nos tempos que correm.
Além de uma invulgar capacidade para atribuir protagonismo ao contrabaixo, garantindo-lhe importantes funções melódicas nos ensembles onde actua, frequentemente pelo uso do arco (ao que não será estranha a sua passagem por várias orquestras em Portugal e na Alemanha, como a Orquestra de Câmara de Lisboa, a Bach Kammerorchester ou a Wernecker Kammerorchester), Carlos Bica revela ainda uma assinalável capacidade para fundir os pressupostos dos mais variados géneros e estilos musicais numa linguagem própria e original, que não se intimida pelo uso de clichés ou de sonoridades estranhas ao jazz (do pop à música popular, passando pelo tango, pela polka, pela valsa e até pelo vulgar solidó, hoje impropriamente designado “pimba”).
Atrevo-me a dizer que, se Pedro Almodovar tocasse jazz, tocaria seguramente algo parecido com Carlos Bica, de tal modo me parecem semelhantes as abordagens artísticas de ambos, embora expressadas em formas de arte completamente distintas. O que os une é a rara capacidade de fazerem arte a partir do mais básico e “foleiro” das culturas urbanas onde se integram, sejam as fotonovelas de Corin Tellado, ou os clichés musicais populares da Alemanha ou de Portugal.
A música de Bica pode assim integrar-se num universo pouco explorado a que poderíamos chamar “jazz kitsch”. Mas ao contrário do que sucede frequentemente com os projectos kitsch na área do pop, a música de Bica é tudo menos simples ou minimalista. O ponto de partida podem ser três ou quatro acordes ouvidos até à exaustão nas rádios de todo o mundo mas, a partir daí, Carlos Bica consegue criar todo um universo musical rico e sedutor, onde o jazz, a música erudita contemporânea e a música popular se cruzam de modo único e apelativo, resultando em algo novo, complexo e inovador.
A acompanhá-lo neste projecto “Matéria Prima” estão João Paulo Esteves da Silva no piano, teclados e acordeão, uma colaboração antiga e prolífica (e muito curiosa pois musicalmente João Paulo parece estar nos antípodas deste universo kitsch de Carlos Bica), Mário Delgado na guitarra, um músico cuja superior técnica e capacidade de improvisação casam na perfeição com o arrojo musical de Bica, o jovem João Lobo na bateria, rigoroso e competente como é habitual, e o alemão Matthias Schriefl no trompete (e mais alguns gadgets…) complemento directo dos predicados musicais de Bica, cabendo-lhe as principais tarefas de “decomposição” musical dos clichés lançados às feras pelo grupo.
Seguramente um dos mais ousados e originais projectos musicais nacionais actualmente em curso e que, inexplicavelmente, ainda não foi gravado em disco.
Ficamos sofregamente à espera.

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