sábado, 28 de novembro de 2009

Contrabaixos


Carlos Barretto Trio Lokomotiv
26 de Novembro de 2009, 23.00h
Hot Club de Portugal (Lisboa)
Carlos Bica & João Paulo Duo
27 de Novembro de 2009, 21.30h
Auditório Ruy de Carvalho (Carnaxide)

Esta foi a semana dos contrabaixistas.
De uma só assentada pudemos assistir à apresentação, no Hot Club de Portugal, do trio Lokomotiv, liderado por Carlos Barretto, e do duo formado por Carlos Bica e João Paulo Esteves da Silva, no Auditório Ruy de Carvalho em Carnaxide, integrado no projecto Portugal Jazz.
Toda a comparação corre o risco de ser injusta, tanto mais quanto se trata de dois dos melhores músicos de jazz nacionais, e indiscutivelmente duas referências incontornáveis do seu instrumento. Mas a coincidência cruzou estas duas excelentes apresentações e eu não resisto a fazer o mesmo nestas breves notas.
Se ambos dispensam apresentações, os respectivos trabalhos como líderes têm merecido atenção diversa do público, sobretudo o internacional.
Carlos Bica há muito se estabeleceu como compositor de referência, trabalhando habitualmente com músicos estrangeiros de enorme gabarito, como Frank Möbus e Jim Black, os seus parceiros do projecto Azul. Esta formação tem-lhe garantido uma maior (e justa) visibilidade internacional, fruto também da excelência das suas composições e da enorme sintonia encontrada com os restantes membros do trio, perfeitamente integrados no universo musical do contrabaixista, complementando-o e explorando todas as suas potencialidades com as suas reconhecidas qualidades técnicas e artísticas.
O mesmo não tem sucedido (com alguma injustiça) com Carlos Barretto. Apesar de este projecto Lokomotiv ter nascido em 2003 com a participação do saxofonista francês François Courneloup, a verdade é que se tem desenvolvido sobretudo em terras nacionais e recorrendo aos dois restantes membros do quarteto inicial, os criativos José Salgueiro na percussão e Mário Delgado na guitarra.
As razões para este défice de internacionalização poderão ser inúmeras e nem estarem directamente relacionadas com a qualidade musical do trabalho do trio. A verdade é que o universo criativo de Barretto e companhia se mostra sistematicamente mais complexo, mais elaborado, mais arrojado até, sobretudo pela forte componente electrónica que lhe é incutida pela guitarra de Mário Delgado.
Não me interpretem mal. Eu sou um adepto incondicional das qualidades técnicas deste genial guitarrista, que considero mesmo um dos melhores (se não mesmo o melhor) da nossa cena jazzística. Tenho contudo mais dúvidas quanto ao seu talento como compositor, sobretudo quando decide fazer uso intensivo da sua panóplia de pedais e samplers, como sucede neste projecto Lokomotiv. O brilhantismo de algumas soluções passa então a alternar com o uso (e por vezes abuso) de arrojadas dissonâncias e de uma “sujidade” electrónica do som emitido pela sua guitarra, que nem facilitam a conquista de públicos mais vastos nem conseguem sequer obter o consenso dos jazzómanos inveterados. Experimental: é certo. Arrojado: sem dúvida. Plenamente conseguido: às vezes…
De resto o trio só tem motivos para conquistar o público. Barretto é de uma suprema criatividade no contrabaixo, com um fraseado por vezes assombroso e de uma inventividade inultrapassável. Salgueiro é régio na percussão. Um dos mais completos e criativos percussionistas nacionais que, ao lado de Carlos Barretto, se sente como peixe na água.

Carlos Barretto - Solo Pictórico




Por contraste o universo musical de Bica é feito de silêncios, de subtilezas, de uma dramática contenção. O contrabaixista é um compositor extraordinário e sabe usar a mais simples e atraente das melodias e transformá-la num exercício de estilo notável. Em Bica a complexidade provém, na maioria das vezes, de um processo de redução, de decomposição da melodia, nos seus componentes mais essenciais, que ele explora com mestria, através da acentuação, do uso criterioso dos silêncios, da subtileza na construção harmónica. Com três ou quatro notas constrói uma canção notável e isso não só é um dom invejável, como poderá explicar a facilidade com que comunica com os mais variados públicos (como o provou esta apresentação em Oeiras, dirigida a um público claramente estranho ao universo jazzístico).
A seu lado João Paulo Esteves da Silva tem sido uma constante. E nesta versão minimalista (de algum modo condicionada pelo trabalho a solo do pianista, no álbum White Works), em duo de piano e contrabaixo, a simbiose dos dois universos musicais parece plena. João Paulo apropriou-se pertinentemente do repertório de Bica e, despindo-o da exuberância exibida no projecto Matéria-prima, por exemplo, tornou-o uma experiência diferente. Mais íntima, mais profunda, ocasionalmente sublime.
Já aqui escrevi, a propósito da apresentação de Matéria-prima na Culturgest, há cerca de um ano atrás, que a ligação de João Paulo à música de Carlos Bica, embora antiga e assente num profundo conhecimento mútuo, me parecia curiosa porquanto os músicos pareciam situar-se musicalmente nos antípodas um do outro. Não foi assim nesta apresentação em duo. João Paulo pegou tranquilamente no repertório de Bica gravado em White Works e moldou-o à sua imagem musical. A presença do contrabaixista em palco mais não fez do que enriquecer a apresentação com a sensibilidade que só o autor poderia emprestar às suas composições, mas nunca as levou para a exuberância de outros projectos. Manteve-se colado à subtileza da interpretação do pianista, numa contenção que não abdicou do dramatismo característico do compositor, mas pô-lo claramente ao serviço da melodia e do maior intimismo do piano.
O resultado foi soberbo. Uma homenagem notável ao património que constitui a obra de Carlos Bica, para puro prazer dos ouvintes.
Em suma, duas viagens completamente diversas conduzidas pelo mesmo instrumento. Duas propostas radicalmente diferentes de interpretar o jazz contemporâneo, imbuído da tradição musical lusitana, e apresentadas por dois dos seus maiores nomes.
Uma semana demonstrativa da enorme vitalidade que o jazz português atravessa na actualidade.

Carlos Bica no Salão Brazil em Coimbra

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