domingo, 23 de maio de 2010

Hope


Filipe Melo Trio
15 de Maio de 2010, 22.30h
Ondajazz (Lisboa)

Esta é seguramente uma das notas mais difíceis de escrever que aqui publiquei.
Em primeiro lugar porque o Filipe Melo é já um amigo e uma pessoa de uma generosidade e autenticidade invulgares. Torna-se assim difícil abstrair-me dessas circunstâncias e concentrar-me em ser objectivo.
Mas também porque sei que ele é um dos leitores mais atentos destas páginas.
Não sou crítico musical nem quero sê-lo (admitindo no entanto que por vezes possa parecê-lo). Tenho o maior respeito pelo trabalho dos músicos (e dos artistas em geral), pelo que nunca me passaria pela cabeça julgá-lo. Desde logo porque não me sinto habilitado para tal, mas ainda que estivesse, considero a diferença um dos direitos fundamentais do artista, pelo que a obra está acima de qualquer julgamento, positivo ou negativo. É uma manifestação íntima do artista e como tal deve ser respeitada. Podemos partilhar ou não desse sentimento pessoal do autor, mas tal não acrescenta nem retira nada à obra. Ela vale por si mesma e independentemente de juízos de valor.
Como menciono claramente no cabeçalho deste blogue, estas notas são meras memórias de um melómano. Não são críticas, são apenas notas soltas e pessoais sobre emoções vividas na partilha da nobre arte musical, que Charles Lloyd definiu, de modo particularmente feliz, como a mais sublime forma de transmitir emoções.
Fica assim claro que não me sinto vinculado à objectividade.
A tudo acresce que tenho uma enorme admiração pessoal pelo Filipe. Não só é um grande músico, docente, compositor, arranjador e, mais importante do que tudo isso, um ser humano extraordinário, como tem uma capacidade única de realizar sonhos. Fernando Pessoa escreveu na Mensagem que “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Filipe Melo tem esse dom sublime de realizar toda a obra que sonha, com ou sem ajuda divina.
Aos 32 anos, além da reconhecida obra musical e docente, já fez um filme, uma série televisiva e, recentemente, estreou-se na banda desenhada em parceria com o talentoso argentino Juan Cavia. E não pensem que tem algum mecenas por detrás a financiar-lhe os projectos! O que Filipe Melo tem a mais do que os outros, além do talento, é uma indomável capacidade de iniciativa, uma teimosia saudável que o leva a empenhar-se de corpo e alma nos projectos que assume e a não desistir deles, por mais dificuldades que encontre. Podem demorar vários anos a concretizar-se, mas o Filipe não desiste. Acredita nos seus sonhos e persegue-os até ao fim.
Nesse sentido considero-o um exemplo notável. Afinal é possível fazer arte em Portugal com pouco dinheiro e sem ajudas do Estado. Temos é poucos Filipes Melo, capazes de perseguir com determinação os seus sonhos criativos.
Este duplo concerto no Ondajazz veio na sequência de um período de alguma inactividade musical do pianista. Foram várias semanas de promoção do livro “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy” que afastaram Filipe Melo dos palcos e o obrigaram a apresentar-se quase sem ensaios. Apesar dos receios exprimidos pelo pianista devo afirmar que as coisas lhe correram muito bem.
O facto de ter ao seu lado dois músicos excepcionais e francamente habituados a tocar com ele, Bernardo Moreira e Bruno Pedroso, facilitou-lhe seguramente a tarefa. O alinhamento incidiu sobretudo em temas que Filipe Melo já teve ocasião de apresentar anteriormente (lembro-me do concerto que este mesmo trio apresentou no Ondajazz em Julho de 2008) e que aguardam oportunidade de gravação em disco (espero que para breve), entre eles o belíssimo Hope. Houve no entanto tempo para algumas estreias, com destaque para a versão de “Little Person” de Jon Brian, reveladora de uma aproximação de Filipe Melo ao universo indie rock, patente noutros projectos do pianista, de que são exemplo os arranjos que fez para Marta Hugon, mas que, até agora, não era notória nos seus trabalhos em trio, claramente dominados pela sua irresistível paixão pelo blues.
Devo ainda realçar a actuação personalizada de Bernardo Moreira, em noite inspirada. O som do contrabaixo esteve excepcional, numa sala que não prima pela perfeição acústica, o que permitiu ao público deliciar-se com os recortes técnicos dos solos do mais velho dos irmãos Moreira, que se assume cada vez mais como um dos nossos mais completos contrabaixistas.
Bruno Pedroso esteve igual a si mesmo. Personalizado e incisivo (talvez até demais, quando os temas pediam alguma contenção…).
Em suma, um excelente concerto de um trio que já se afirmou como uma das mais autênticas e inspiradas formações do jazz nacional.

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