domingo, 13 de dezembro de 2009

Celebrando o World Jazz


Neguyên Lê, Prabhu Edouard, Mieko Miyazaki
com a participação de Hariprasad Chaurasia
Saiyuki
ACT, 2009

Em Maio de 2008, por ocasião da inauguração do Museu do Oriente, em Lisboa, Mário Laginha estreou uma obra encomendada por esta instituição e na qual pretendeu fundir os universos clássico, jazzístico e oriental. A acompanhá-lo estiveram o guitarrista de origem vietnamita Nguyên Lê, o tablista indiano Prabhu Edouard e ainda o percussionista e flautista japonês Joji Hirota.
Se outros méritos esta obra não tivesse (relembro que continua por editar em disco), e teve muitos, bastaria o de ter servido de mote para uma colaboração entre o guitarrista e o tocador de tabla, ambos residentes em Paris.
Juntou-se-lhes ainda a japonesa, também residente em Paris, Mieko Miyazaki, tocadora de koto (a cítara japonesa) e shamisen (guitarra tradicional de três cordas) e nasceu o Saiyuki Trio, que em Julho passado se apresentou entre nós, uma vez mais no Museu do Oriente.
Este disco, gravado em Paris, com produção e mistura do próprio Lê, conta ainda com a participação em três temas do flautista indiano Hariprasad Chaurasia, com mais um instrumento tradicional asiático, a flauta bansuri.
O resultado é aquilo que se podia esperar, sobretudo para quem se deliciou com os dois concertos no Museu do Oriente, como foi o meu caso: uma deslumbrante viagem pela música asiática, guiada pela enorme criatividade e sensibilidade de Lê.
Na verdade o nome do álbum e do trio, Saiyuki, designa precisamente uma obra literária chinesa do séc. XVI, do poeta Wu Cheng’en, que se poderia traduzir por “Viagem Para o Ocidente”.
Uma questão de perspectivas…
O álbum começa na Índia com o tema Sweet Ganesh de Prabhu Edouard. Tema inspirado no simpático deus de cabeça de elefante, mestre do intelecto e da sabedoria. Alegre e apelativo, é a introdução perfeita para um disco que promete uma viagem inesquecível pela música asiática. Se o mote de Edouard é claramente indiano, já a suavidade da guitarra de Lê e o koto de Miyazaki levam-no para terras mais levantinas. O solo vocal de Edouard é quase um scat singing, digno de Bollywood.
Em Autumn Wind a referência é a China continental. Um tema lento, ambiental, evocativo das planícies asiáticas e do vento que as percorre no Outono. Belo e lírico, resulta igualmente pelo contraste com a alegria ganeshiana do tema inicial. Aos agudos da guitarra de Lê sobrepõe-se a flauta bansuri do indiano Hariprasad Chaurasia e também o Shamisen tocado por Miyazaki. Este é outro Oriente, onde o tempo passa lentamente, ao sabor do suave decorrer das estações do ano, das colheitas e das meditações budistas.
Um riff de blues abre as hostilidades em Mina Zaki, um tema da japonesa onde Oriente e Ocidente se encontram. Rápido e dançável, cruza o rendilhado do koto com os acordes distorcidos da guitarra e a flauta bansuri de Chaurasia. O jazz e o blues não andam longe, embora os instrumentos remetam invariavelmente para o Oriente. O Extremo Oriente ao ritmo de um western.
Mayur marca o regresso ao subcontinente indiano. A guitarra freetless e o shamisen desenvolvem um diálogo intercontinental onde o jazz se mostra novamente pertinente.
Sangam é uma celebração do encontro de culturas. Outra oportunidade para as origens diversas dos intérpretes se encontrarem num tema que celebra a fusão, de modo alegre e amplamente conseguido. Oriente e Ocidente juntos com Lê a destacar-se num solo onde surgem até referências africanas, no ritmo, fraseado e até pela inclusão dos coros.
Azur é um tema enigmático, por vezes perturbador. A inspiração é chinesa e vietnamita. Hipnótico e redundante na melodia, vive das pequenas variações que os génios musicais dos intérpretes criam pela sucessão dos instrumentos, construindo diversas acepções do tema. Uma pérola minimalista, de uma beleza e simplicidade desarmantes.
Um Japão festivo é apresentado por Miyazaki no tema Izanagi Izanami, num diálogo construtivo com a guitarra de Lê, sob a omnipresença da percussão de Edouard. Diálogo esse que é transposto posteriormente para as vozes de Edouard e de Miyazaki. Há ecos medievais neste tema.
A Indochina regressa pelas mãos de Lê, em Hen Ho. Nova incursão pela Ásia continental num diálogo mais jazzístico e crescente entre a guitarra e o shamisen.
Nanae Goromo é o único tema assinado pelo trio e constitui uma incursão pela tradição oriental mais dramática. Uma canção onde a teatralidade do Kabuki ou da ópera chinesa vêm à lembrança. Mas o desenvolvimento instrumental é novamente de fusão panasiática, sempre com o ocidente à espreita através da guitarra de Lê, que decompõe o tema numa interpretação de inspiração jazzística.
A fechar o disco Ile, uma belíssima balada de Edouard carregada de nostalgia emprestada pelo arranjo e interpretação da suave guitarra de Lê. Uma Índia nostálgica e apaixonante.
Uma celebração do world jazz por um dos seus maiores intérpretes.
Obrigatório.

Nguyên Lê, Prabhu Edouard & Mieko Miyazaki – Azur

Sem comentários: